Dirigentes negam irregularidades e afirmam: "O Cruzeiro jamais vai falir. Essa camisa não tem preço"

(Foto: Reprodução)


A diretoria do Cruzeiro convocou uma entrevista coletiva na tarde desta segunda-feira, na Toca da Raposa 2, para comentar a reportagem exibida pelo Fantástico, da TV Globo, no domingo. O programa mostrou que a Polícia Civil de Minas Gerais investiga a diretoria do Cruzeiro por indícios de pagamentos suspeitos, falsidade ideológica e lavagem de dinheiro.

O presidente do Cruzeiro, Wagner Pires de Sá, começou a entrevista falando sobre os repasses a conselheiros.

– Há mais de 50 anos o Cruzeiro adota a prática de contratação de conselheiros. Seria uma hipocrisia não contratar. Normalmente eles perdem direito de votação, então não há interferência, não há nenhuma proibição de que conselheiro seja funcionário do clube. Mas o presidente do Conselho me sugeriu que, a partir de agora, eles pediriam licença do Conselho. Achei conveniente e isso será colocado em prática.

Quem mais se manifestou durante a coletiva foi Itair Machado de Souza, vice-presidente de futebol. O dirigente disse que o clube está "sendo perseguido" – segundo ele, por "bater de frente com os queridinhos da mídia nacional" – e falou sobre:

A investigação da Polícia Civil;

O empréstimo de R$ 2 milhões com um empresário no qual foram dados direitos de jogadores em troca da quitação da dívida (inclusive de um garoto de 11 anos). O clube disse que foi dada uma "garantia", mas no documento obtido pelo Grupo Globo é citado o termo "quitação de empréstimo", com Cristiano declarando "receber e adquirir" os percentuais de direitos econômicos.

Seus aumentos salariais;

Relação com as organizadas.

– Aqui no Cruzeiro não tem desonesto. Estamos sendo perseguidos (...) O processo da polícia civil já existia e não chama processo, chama procedimento, dura meses, começou por denúncia anônima, foi fogo amigo, concluído e arquivado. Agora, com essas matérias, o procedimento foi reaberto. Mas o Cruzeiro confia na Polícia Civil. O Cruzeiro está tranquilo quanto a isso – disse Itair, que minimizou a dívida do clube, atualmente em R$ 520 milhões.

– Teve um conselheiro que falou que o Cruzeiro está falido. O Cruzeiro jamais vai falir. Essa camisa não tem preço – completou Itair.

A dívida

Flávio Pena, diretor financeiro do Cruzeiro, explicou que a dívida do clube já era alta quando a atual diretoria assumiu o comando do clube, no ano passado. O valor do rombo supera meio bilhão de reais.

– Eu entrei em julho, para ajudar. Sou um cara técnico, mas o que me impressiona na reportagem é que algumas coisas são explicáveis. Poderiam ter feito perguntas, que fizeram, mas não colocaram na íntegra. A dívida é alta, e o pior, é que tivemos valores de salários atrasados, dois ou três meses, mais meses de imagem atrasados, mais imposto de renda, o que obrigou uma antecipação de R$ 50 milhões. Isso gerou uma exposição de caixa do clube. O que fez o Cruzeiro pegar os R$ 2 milhões (com o empresário Cristiano Richard). É função de caixa, é desespero. Nossa obrigação foi reduzir as taxas e custos financeiros, como o presidente disse, que em 2017 tínhamos taxas a 4,5%. Reduzimos para 1,5%. Mesmo assim, a dívida que pressiona o caixa e é iminente, como o caso da Fifa, que tivemos que pagar, e gerou problema. Todos os dias temos que fazer uma engenharia, para rever a situação – explicou Pena.

A investigação

A Polícia Civil de Minas Gerais instaurou inquérito para apurar denúncias sobre falsificação de documento particular, falsidade ideológica e lavagem de dinheiro. Os investigadores já ouviram 15 pessoas, todas elas relacionadas de alguma forma com o Cruzeiro – entre funcionários e ex-funcionários, dirigentes e prestadores de serviços que realizaram transações com o clube.

O inquérito se baseia em um balancete contábil analítico, que demonstra pagamentos feitos pelo Cruzeiro no decorrer de 2018, ao qual o Fantástico também teve acesso. A reportagem foi além e conseguiu quase 200 páginas de contratos e planilhas de controle interno. Há evidências de que a diretoria cruzeirense quebrou regras da Fifa e da CBF, no âmbito do futebol, e do governo federal, por meio do Profut, programa de renegociação de dívidas fiscais com clubes.

– O processo da Polícia Civil já acontecia anteriormente. Não é processo, é procedimento. Foi aberto, levou meses, ouviram várias pessoas, foi denuncia anônima, fogo amigo. Esse processo foi encerrado, concluído e arquivado. Agora, depois que veio a tona a matéria, o procedimento foi reaberto. O Cruzeiro confia na Polícia Civil, que a gente sabe que é uma das melhores do Brasil. O Cruzeiro está tranquilo quanto a isso. As documentações foram solicitadas, amanhã o Cruzeiro vai entregar na Polícia Civil. E temos tranquilidade. O Cruzeiro jamais vai falir. Essa camisa não tem preço – disse Itair.

A ligação com o empresário Cristiano Richard

Um dos casos mais comentados na coletiva foi o contrato de empréstimo assinado pelo Cruzeiro com um empresário chamado Cristiano Richard dos Santos Machado. Sócio de firmas de locação de veículos e equipamentos para proteção individual, ele não tem atuação no futebol. Ou não tinha. Em 1º de março de 2018, o empresário assinou contrato no qual formalizou um empréstimo de R$ 2 milhões para o Cruzeiro. A quantia deveria ser paga em duas parcelas.

Um mês depois, em 3 de abril, o Cruzeiro assinou um segundo documento com Cristiano Richard. O clube alegou que não tinha condições financeiras para quitar o empréstimo e aceitou quitar a dívida com a cessão de direitos desportivos. A Cristiano Richard foram entregues percentuais sobre os direitos econômicos de dez jogadores do elenco profissional e das categorias de base. CLIQUE AQUI e veja a relação de atletas e a porcentagem negociada de cada um deles.

Na prática, esses direitos correspondem à multa rescisória de contratos entre clubes e atletas. Quando o atacante David fosse vendido pelo Cruzeiro para outra equipe, por exemplo, 20% do valor da transferência seriam repassados a Cristiano Richard. No entanto, a prática foi proibida pela Fifa em 2015. Apenas clubes e os próprios atletas podem, desde então, ter partes de direitos econômicos – legalmente semelhantes ao que antigamente se chamava de “passe”.

Itair Machado disse que o contrato deu "margem à dupla interpretação", mas negou veementemente que se tratasse de venda desses jogadores, e sim de garantias para que se pudesse obter o empréstimo. Itair disse que foram pagas duas parcelas de R$ 400 mil e que o restante foi renegociado para ser pago em mais prestações. Ele afirmou que o clube não corre risco de perder os direitos desses jogadores.

– O principal é o seguinte: o que está nas redes sociais é que o Cruzeiro vendeu um monte de jogador por R$ 2 milhões. Não é verdade. O Cruzeiro fez um contrato de mútuo (empréstimo). O Cruzeiro pagou duas parcelas. Temos aqui os depósitos para comprovar. Depósito não tem como falsificar. Depositamos. A primeira parcela foi paga em 2018. A segunda em 2019. O importante é mostrar pra você, torcedor: o Cruzeiro não vendeu os jogadores. O Cruzeiro, agora, deve 1,4 milhões (ele explica que os atletas foram colocados como garantia para pagamento). Diante disso tudo, o Cruzeiro resolveu chamar o empresário. Fez um novo contrato com o empresário e repactuou em 8 parcelas de 190 e poucos mil reais. Já está assinado – disse Itair Machado.

O dirigente explicou que se viu obrigado a dar os direitos dos jogadores, e não imóveis do clube, como garantia para obtenção do empréstimo por uma "questão de emergência", já que não havia tempo hábil, segundo ele, para levar ao Conselho a aprovação de que imóveis fossem usados como garantia.

Entre os atletas cujos percentuais foram prometidos a Cristiano Richard em troca do empréstimo de R$ 2 milhões está Estevão William. Conhecido nas categorias de base cruzeirenses como “Messinho”, o garoto tem apenas 12 anos. Há grande expectativa em relação ao seu futebol, tanto que com esta idade ele já tem contrato de patrocínio com marca internacional de materiais esportivos, além de ser agenciado pelo empresário André Cury há cerca de três meses.

O Cruzeiro não poderia ter cedido percentuais sobre o contrato de Estevão a terceiros, em primeiro lugar, porque a prática foi proibida pela Fifa. Em segundo, porque potenciais jogadores só podem assinar seus primeiros contratos profissionais a partir dos 16 anos. Antes disso, crianças e adolescentes podem no máximo ter contratos de formação, nos quais não há direitos federativos e econômicos. A venda de 20% de Messinho não poderia ter ocorrido.

– Apelidaram ele de Messinho, acho até com razão, mas o Cruzeiro em momento algum vendeu um "de menor" (sic) – disse Itair, citando casos de outros dois jogadores em disputa com América-MG e Palmeiras, também menores de 16 anos.

– Quero tranquilizar o torcedor sobre o Estevão, "Messinho". O Cruzeiro em momento algum vendeu menor de idade. O Cruzeiro entende que o jogador até os 14 anos vai pra onde quiser. O Cruzeiro jamais venderia, e nem o empresário era burro de comprar um jogador de 12 anos, porque sabe que não tem validade nenhuma. Ele (o garoto) entrou numa cesta de garantia – completou Itair.

– Não é ilegal. Se você tiver aí o documento da CBF que fala que é ilegal, você me mostra. Não é ilegal. Não vendemos. Enquanto ele estiver vestindo o manto sagrado do Cruzeiro, ele, queira ou não, é patrimônio do Cruzeiro. Não ter contrato ainda é questão da lei. O Cruzeiro pode dar como garantia qualquer patrimônio dele. Nós não vendemos. É ilegal vender jogador para particular ou terceiros. Dar como garantia é outra coisa. Enquanto o jogador tiver no Cruzeiro, ele é nosso. Com ou sem contrato.

Sanção da Fifa?

Por essas infrações às regras da Fifa, o Cruzeiro pode ser proibido de transferir jogadores e até registrar novos atletas, de acordo com o advogado desportivo Bichara Abidão Neto. As sanções disciplinares pela cessão de direitos econômicos para terceiros, como no caso de Cristiano Richard, começam em advertência e multa e podem ser mais severas em caso de reincidência. CLIQUE AQUI e saiba quais punições e sanções o Cruzeiro está sujeito por causa de irregularidades em negociações.

– Quanto a essa situação, nosso advogado pode dar uma explicação técnica, mas não haverá, de forma alguma, nenhuma penalidade. Não foi praticado nenhum delito, não houve nada que possa prejudicar nossos contratos com a CBF, a Fifa. Já conversei com a CBF sobre essa situação, eles estão tranquilos – diz o presidente Wágner Pires de Sá.

– Em relação a possíveis punições, a contratação de intermediários que não estão cadastrados na CBF, a dinâmica do futebol exige que você faça contratos rápidos. Naquele momento que você faz o contrato, talvez o intermediário tenha vencido ali a licença dele, e eu não vou deixar de fazer o contrato com aquele empresário por esse motivo – completou Edson Travassos, advogado do Cruzeiro.

Relação com torcidas organizadas

Os documentos obtidos pela reportagem também revelam pagamentos feitos pelo Cruzeiro a torcidas organizadas. Daniel Gomes Sales, conhecido como Quik, é diretor da Máfia Azul e aparece na contabilidade com o valor de R$ 88 mil recebido no decorrer de 2018. Ele possui contrato com o clube válido até dezembro de 2020 no valor de R$ 8 mil mensais.

Daniel possui condenação por porte ilegal de armas e cumpriu prisão em regime semiaberto. Após a sua soltura, passou a se dedicar ao braço de comunicação da torcida organizada à qual é filiado, a TV Máfia Azul. Ele acompanha a delegação do futebol profissional em viagens dentro e fora do país e tem acesso privilegiado a bastidores para produzir o conteúdo.

A Máfia Azul não é a única torcida organizada remunerada pelo clube. A China Azul também possui contrato válido até dezembro de 2020, pelo qual tem direito ao repasse de R$ 6 mil mensais a título de divulgação das marcas cruzeirenses em seus canais de mídia e redes sociais.

– A ideia foi minha. O Cruzeiro, na gestão passada, sempre tinha muita briga entre as próprias torcidas organizadas. Quando a Máfia Azul veio com o projeto de criar a TV Máfia Azul, o Cruzeiro fez um contrato de publicidade. E seria um bom retorno para o Cruzeiro apoiar o projeto. Vocês da imprensa não têm o Cruzeiro como foco, a TV Máfia Azul tem o Cruzeiro como foco. E ela tem dado retorno satisfatório. A China Azul tem um trabalho grande onde é situada a sede da torcida. Dentro disso tudo, o Cruzeiro pactuou com as torcidas que teria que ser obrigatório evitar as brigas nos estádios. Se vocês pesquisarem, depois que a gente fez isso, não houve nenhuma violência no estádio. Estamos colocando ingresso a 10 reais, famílias estão indo, crianças. A gente entende que o investimento não foi na organizada, foi para o Cruzeiro, para o torcedor – disse Itair Machado.

Salários altos de dirigentes

Itair Machado assinou seu primeiro contrato com o Cruzeiro em 2 de janeiro de 2018, por meio da empresa da qual é proprietário, a IMM Assessoria e Consultoria Esportiva Ltda. Desde então, ele já assinou dois aditivos que, na prática, consistem em aumentos para ele mesmo: um que determina que o valor mensal de R$ 180 mil passa a ser líquido (ou seja, sem descontos) e não bruto, como antes, e outro para acrescentar à sua remuneração o recebimento de "bichos" dobrados (premiações por conquistas).

A soma da entrada paga em fevereiro, dos salários durante todo 2018 e das premiações por títulos, no caso de Itair, chega a R$ 3,3 milhões – fora o "bicho" distribuído ao elenco profissional. De todo modo, a quantia representa média de R$ 275 mil por mês. De acordo com pesquisa feita pela auditoria e consultoria Ernst & Young em 2017, a remuneração média de um diretor de futebol de primeira divisão que receba como pessoa jurídica é de R$ 115 mil por mês.

– Só este ano, e ficamos felizes, tivemos dois times que fizera proposta para que ele fosse trabalhar como diretor de futebol, duas grandes equipes brasileiras. Nós conseguimos mantê-lo. O Itair está entre os melhores, e não tem os melhores vencimentos. Há profissionais com vencimentos maiores. Ele trabalha por performance, ou seja, se nós obtivermos, ganhamos torneios importantes para o clube, ele trará, consequentemente, recursos para os cofres do Cruzeiro – disse Wagner Pires de Sá, presidente do Cruzeiro.

– Sobre o meu salário, eu tenho o maior orgulho de ter chegado a esse cargo. O que eu ganho hoje, para ser um nível de salário de Brasil, é só se eu ganhar títulos. E felizmente, de cinco torneios, nós ganhamos três – disse Itair.

– O Itair não assinou pelo Cruzeiro. O Itair é da empresa. Isso aí foi um engano. Eu assinei pelo Itair, pela minha empresa. Foi divulgado que eu dei aumento pra mim. Contrato vocês têm, é só conferir lá. Não tinha sido colocado no meu contrato a bonificação pela Copa do Brasil. R$ 600 mil. (A bonificação para) todo dirigente é acima de R$ 1 milhão na Copa do brasil, Libertadores. E acredito que vou ganhar bem neste ano de novo – completou Itair.

No caso de Sérgio Nonato, a quantidade de contratos e aditivos é ainda mais farta. Serginho, como é conhecido em Belo Horizonte, é um ex-comentarista que participava de programas de mesa-redonda na hora do almoço na TV Alterosa. Ele foi contratado por Wagner Pires de Sá para ocupar a diretoria-geral do Cruzeiro, cargo que, segundo seus contratos, está diretamente ligado ao departamento comercial e de marketing.

O salário era de R$ 60 mil. Apenas duas semanas após a assinatura do primeiro contrato, Serginho ganhou aumento. Em seu primeiro aditivo contratual, o dirigente ganhou “luvas” de R$ 300 mil a serem pagas no vencimento de maio de 2018, além de um aumento salarial para R$ 75 mil mensais. No fim do ano, o presidente concedeu um novo aumento a Serginho, passando sua remuneração mensal para R$ 125 mil.

A considerar apenas as “luvas” e remunerações pagas pelo Cruzeiro a Sérgio Nonato, a quantia recebida por ele no decorrer de 2018 chega a pelo menos R$ 875 mil. Mais uma vez, não foram contabilizados pela reportagem os bichos pagos ao futebol profissional, aos quais o dirigente também tem direito, embora não pertença ao departamento de futebol. Serginho ainda tem direito a comissões sobre negócios fechados por ele na área comercial.

Globo Esporte

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