Relatório da Human Rights Watch pede fim de exames de sexo em atletas de elite

(Foto: Reuters)


Relatório divulgado nesta sexta-feira pela Human Rights Watch - organização internacional não governamental que defende e realiza pesquisas sobre os direitos humanos - revelou que ao menos uma dezena de atletas mulheres negras do hemisfério sul têm sido prejudicas por entidades esportivas, que lhes obrigam a fazer exames de sexo insistentemente. O documento, que foi explicado em uma entrevista para a imprensa realizada de maneira virtual, enfoca alguns casos específicos, como o das três medalhistas dos 800m do atletismo nas Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016.

Caster Semenya (ouro), Francine Niyonsaba (prata) e Margaret Wambui(bronze), que subiram ao pódio naquela prova, estão proibidas de competir em provas entre 400m e 1.600m por uma resolução da World Athletics (antiga IAAF, a federação internacional de atletismo). Segundo a entidade, as três apresentam altos níveis de hormônio que as coloca em vantagem diante de outras atletas.

Semenya, Niyonsaba e Wambui só poderão voltar a disputar as provas compreendidas nessas distâncias caso aceitem tomar substâncias que reduzam a produção de testosterona em seus corpos.

- Nós também somos seres humanos. Estou falando aqui não só por mim, mas por todas as jovens atletas mulheres no mundo, que têm sido barradas do esporte - afirmou Francine, de Burundi, durante a entrevista.

Semenya, bicampeã olímpica dos 800m, protagonizou uma briga com a World Athletics para poder voltar a disputar sua principal prova. Porém, para não ficar inativa e tentar vaga nas Olimpíadas de Tóquio, tem corrido os 200m.

A situação delas não é isolada. Ao longo de 127 páginas, o relatório aponta que outras inúmeras atletas que disputam distâncias entre 400m e 1.600m se tornaram "alvo" de federações e outros órgãos esportivos internacionais, sobretudo da World Athletics, em uma prática que "configura um policiamento do corpo das mulheres com base em definições arbitrárias de feminilidade e estereótipos raciais".

Além de serem colocadas em escrutínio a todo tempo, de acordo com a Human Rights Watch existe uma prática tóxica de abusar dos exames médicos nestas atletas: com testes de urina, sangue e genética.

Logo na abertura do documento, a meio-fundista Annet Negesa, de Uganda, relatou que passou a ser "perseguida" a partir de 2011.

- Eu me perguntava por que eu? Eu não via outras atletas dando seis tubos de sangue, como eu - contou.

Naquele ano, disse a atleta, ela passou por um teste de urina no Campeonato Africano, em Botswana, no mês de maio. Três meses depois, conseguiu chegar ao Campeonato Mundial adulto, em Daegu, na Coreia do Sul, e teve de fazer inúmeros testes de sangue - aos quais nunca teve acesso. No ano seguinte, às vésperas das Olimpíadas de Londres, foi informada que não poderia disputá-las.

- Meu treinador me disse que eles levaram minhas amostras (de sangue) e acham que encontraram lá hormônios masculinos muito elevados. E por aquela razão não podiam aceitar que eu corresse - disse.

Posteriormente, Annet foi aconselhada a se submeter a uma cirurgia para reaver sua licença para competir. O procedimento, realizado em Kampala, capital de seu país, era uma gonadectomia para remoção/correção de problemas nas genitálias ou ovários. A intervenção lhe causou problemas de saúde pelos anos subsequentes.

O exemplo de Annet é citado no relatório (que pode ser lido neste link; versão apenas em inglês) como caso de pressão para seguir no esporte e supressão de direitos fundamentais. O ambiente coercitivo criado por entidades esportivas tem levado atletas a fazer operações invasivas e, geralmente, desnecessárias.

Para elaborar o documento, as pesquisadoras Payoshni Mitra e Katrina Karkazis entrevistaram atletas, treinadores e autoridades ao longo de 2019 para entender o problema.

- As mulheres do hemisfério sul são alvos do atletismo mundial há décadas, que trata aquelas com altos níveis de testosterona como menos humanas - disse Mitra.

As duas pesquisadoras também analisaram documentos e manifestações espontâneas, como uma carta escrita em 2019 por 25 atletas francesas e endereçada ao Comitê Olímpico Internacional (COI), ao presidente da World Athletics, Sebastian Coe, e ministros da saúde de diversos países na qual diziam que "estas mulheres são seres humanos e atletas de alto nível como nós".

Por fim, o relatório da Human Rights Watch faz recomendações. Pede, por exemplo, que a World Athletics revogue sua determinação de banir atletas com altos níveis de hormônios das provas entre 400m e 1.600m. E que o COI faça valer um dos princípios fundamentais de sua Carta Olímpica, que prevê que "todo indivíduo deve ter a possibilidade de praticar esporte, sem discriminação de qualquer tipo”.

- Infelizmente, parece que os esforços não estão indo na direção correta - afirmou Karkazis, uma das pesquisadoras do documento.

- Ser obrigada a se submeter a um exame médico pode ser humilhante, já que é medicamente desnecessário. Identificar atletas com base em vigilância e suspeitas equivale a um policiamento dos corpos das mulheres baseado em definições arbitrárias de feminilidade e estereótipos raciais - finalizou Agnes Odhiambo, pesquisadora sênior de direitos das mulheres da Human Rights Watch.

Globo Esporte

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