Futebol tira meninas da rua e do tráfico no Rio de Janeiro

Time feminino do Brasil com Gilberto Silva na Street Child World Cup

Time feminino do Brasil com Gilberto Silva na Street Child World Cup

A Street Child World Cup (SCWC), torneio de futebol que reúne cerca de 230 jovens em situação de rua, começou no último domingo tendo como jogo de abertura a partida entre Brasil e Indonésia no campo principal. O Brasil venceu por 14 a 0 jogando firme do começo ao fim, sem aliviar mesmo em face da clara inferioridade técnica do adversário.

Mas quem venceu fácil assim foram as meninas do Brasil. O primeiro duelo masculino veio na sequência e não como jogo de abertura, conforme costuma acontecer em eventos que envolvem times femininos e masculinos. É que, na luta para tirar crianças das ruas, não são só os meninos que precisam de uma mão para encontrar um caminho melhor, e também não são só eles que podem encontrar essa ajuda no futebol.

Depois da primeira edição focada nos garotos, na África do Sul em 2010, a ONG Save the Children, responsável pela copa, alterou o projeto de modo a encampar também garotas. Para os organizadores, o torneio feminino é "uma afirmação de solidariedade com as meninas de rua tantas vezes ignoradas. É uma oportunidade para que estas meninas mudem suas percepções e para que suas histórias sejam ouvidas".

As experiências dos grupos que vieram ao Rio de Janeiro nesta semana para a copa são bem diferentes entre si porque variam de acordo com a realidade sócio-econômica de cada país. Foram nove equipes femininas selecionadas de projetos sociais na África do Sul, Brasil, El Salvador, Filipinas, Indonésia, Inglaterra, Moçambique, Nicarágua e Zimbábue.

Enquanto nos Estados Unidos, por exemplo, os problemas estão mais ligados às dificuldades que elas têm com as famílias, no Brasil, o maior desafio é afastá-las da violência e do tráfico (e uso) de drogas.

A questão é tão acentuada que a equipe brasileira não pôde acompanhar a visita ao morro do Vidigal nesta terça-feira. O treinador do time e coordenador do projeto Favela Street no Complexo da Penha, Philip Veldhuis, foi quem explicou o veto: "Por mais que haja favelas ocupadas pela polícia, nós sabemos que o tráfico ainda está vivo e a rivalidade permanece. Por essa razão é que alguns pais não queriam liberar as meninas para participar do torneio se a visita ao Vidigal acontecesse, e eu precisava garantir para os pais que elas estariam seguras, ainda que o risco fosse só de 1%".

Desde a instalação da primeira UPP em 2008 até a 39ª, neste ano, o tráfico vem tentando reorganizar a divisão do território carioca. Enquanto o time masculino do Brasil vem de um projeto de Fortaleza, Ceará, a equipe feminina vêm do próprio Rio de Janeiro, de morros como Caracol, Chatuba, Grotão, Vila Cruzeiro, e também do Complexo do Alemão e da Favela do Lixão, que já tiveram histórico de disputas com a Rocinha ou com o Vidigal no passado.

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Seleção brasileira do Street Child World Cup, competição mundial que reúne crianças que vivem ou trabalham nas ruas, faz homenagem ao garoto Rodrigo Kelton, que foi assassinado em Fortaleza

Sobre as questões que envolvem a situação de vida das jogadoras, é Philip quem fala. O cuidado com a segurança das menores de idade é grande e as entrevistas com o time brasileiro são precedidas pela declamação da lista de restrições: é proibido perguntar sobre a vida delas nas ruas, sobre as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e sobre tráfico de drogas.

A conversa com elas, então, acaba se restringindo a temas amenos, como a rouquidão da capitã Claudiane Santos, de 17 anos — ela cantou e gritou tanto junto com as colegas de time que a voz acabou antes de estreia — ou o esforço para se comunicar com os outros times através de gestos já que não falam a mesma língua, conforme conta Jéssica Maria, 18 anos, que está sendo preparada para ser treinadora.

Mas o que há detrás da alegria de participar de um evento como este são histórias de vida cheias de altos e baixos, idas e vindas, apesar da pouca idade. Há no grupo, por exemplo, uma garota cujo namorado era traficante e a usava de "mula" para transportar drogas para outros países. Ela também está sendo treinada para ser uma das técnicas de futebol do Favela Street, da ONG Ibiss. Durante a SCWC, sua função é manter a animação e a união do time, assim como a segurança, já que hoje ela tem diploma de vigilante.

Tornar ex-soldados do tráfico exemplos para outras crianças e jovens é um dos pilares do projeto idealizado e tocado por Philip, que é holandês e iniciou o trabalho com futebol no Complexo da Penha em 2008: "Todas as meninas que vieram para cá [SCWC] estão se sentindo importantes, estão nesse processo de melhorar de vida e se tornar exemplos positivos no local onde moram".

Todas as noites durante a copa, o time feminino se reúne para falar sobre o dia, resolver rixas internas e reforçar o espírito de grupo. Os trabalhos feitos dentro e fora de campo se complementam: "Estou há um ano e meio treinando as meninas e ando muito feliz com essa equipe. Elas tocam a bola, têm foco, ninguém deixa a marcação de lado, mostram criatividade, fazem golaços. Nunca tinha gostado tanto de ver um time feminino jogando", confessa o treinador, meio sem jeito, e completa dizendo que elas têm consciência de que participar do evento de uma semana com jovens do mundo todo está sendo uma das melhores, senão a melhor, experiência pela qual já passaram.

"Fico muito feliz de poder ser a pessoa que leva esse tipo de oportunidades a elas", diz Philip. Nos últimos dias, as meninas da seleção brasileira receberam dicas de Gilberto Silva antes da estreia, conversaram com Bebeto e ainda encontraram Zico — em vez de visitar o Vidigal, elas foram à Escola Britânica do Rio de Janeiro, outra parceira da SCWC, onde tiveram a surpresa da presença do Galinho e disputaram um amistoso com o time da escola, vencido por elas por 7 a 0.

A ideia é que as garotas entendam que há saídas dignas para qualquer dificuldade e fujam de destinos como o de Danúbia de Souza Rangel, namorada de "Nem da Rocinha", presa recentemente por participar das atividades do tráfico, e cultivem outros tipos de sonhos. Para algumas delas, o primeiro deles é ser jogadora profissional de futebol, ainda que saibam que será preciso entrar na luta pela melhora no cenário da modalidade no Brasil. "Nossa função é plantar as sementes", encerra Philip.

UOL Esporte

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